23 novembro 2005

O Tempo e o Relogio

          Certa vez, o tempo e o relógio se
encontraram (embora estejam todo tempo juntos).

          O tempo, revoltado há muito tempo, disse
ao relógio tudo aquilo que, há tempos, vinha
guardando.

          Que ele, tempo, tinha saudades daqueles
tempos em que não existiam relógios e todo mundo
tinha tempo. Mas, quando o homem, ingrato, fabricou
o relógio que começou a marcar tempo, ninguém mais
conseguiu ter tempo. O homem ficou reduzido a
horas, minutos e segundos.

          "Antes, naqueles bons tempos" - disse o
tempo - "todo homem tinha tempo de curtir a
natureza. Viviam com o sol de dia, dormiam com a
lua à noite".

          "Quando a lua caprichosa não queria
aparecer, era um bando de estrelas que piscavam
brincalhonas, dando tempo para o sol nascer".

          "Mas agora, nestes tempos, ninguém mais
tem tempo de ver se a lua vem sorrindo para a
direita ou para a esquerda, se está de cara cheia
ou de mau humor, sem querer aparecer".

          O tempo prosseguiu com um sorriso de
tristeza.

          "Antigamente - que tempos! - os homens
nasciam no tempo certo em que tinham de nascer. Não
havia incubadora para os fora de tempo nem
cesariana para os que passam do tempo. A natureza
sabia, em tempo, quando era tempo. Hoje, o homem já
obedece a você, mesmo antes de nascer. Os médicos
estão apressados e sem tempo para perder".

          O relógio só ouvia e, apressado,
prosseguia no seu tic-tac sem tempo de retrucar,
com medo de se atrasar.

          "Noutros tempos" - disse o tempo - "o
homem crescia sem pressa, com tempo de amadurar.
Comia sem ter horário, dormia quando tinha sono.
Fazia amor ao relento, como flores que se beijam,
como aves que se aninham. Envelhecia aos
pouquinhos, como um calmo entardecer. Depois,
dormia o sono profundo e, no outro despertar,
abraçava-me com carinho, no infinito...no
infinito...".

          O tempo enxugou uma lágrima, talvez de
orvalho. A voz que estava embargada, tomou uma
conotação de revolta:

          "Hoje, vai logo para a escola e traz para
casa um horário. Quando aprende a ler as horas
ganha do pai um relógio e, assim, ensinam-lhe bem
cedo a maneira mais correta de nunca ter tempo na
vida".

          O tempo não se preocupava mais com o
tic-tac do relógio que nada retrucava para não se
atrasar. Continuou a sofismar com voz mais branda.

          "Come apressado, sem tempo. Dorme ainda
sem sono, pois, de manhã bem cedinho, você começa a
gritar arrancando-o da cama, quando ainda queria
dormir".

          "Amor? Nem sei se ainda faz... há gente
que nem tem tempo. Quando faz é no zás-trás. Quando
vê, já envelheceu, sem ver o tempo passar".

          "Na hora do sono profundo, enterram-no
apressados, para a vida continuar. E no outro
despertar, chega tão abobalhado que não consegue me
achar".

          Ao relógio, sem poder nunca parar, só
restava se calar.

          Além do sentimento de culpa que passou a
carregar, a partir desse tempo, quando bate as doze
badaladas no silêncio da meia-noite, o canto é tão
melancólico que até parece chorar.

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